A Sabedoria Jeca

Uma tarde abafada com pesadas nuvens cobrindo o céu enquanto o Matuto observa, calmo e composto, de cócoras, o movimento dos pássaros. Empurra sutilmente o chapéu de palha para trás, passa o cigarro enrolado do lado direito para o lado esquerdo da boca, coça o queixo e afirma, categórico:

– Uai, sô, hoje chove.

Ah, delicada Sabedoria Jeca, tão útil e atraente como câncer testicular. Aquela maravilhosa habilidade de prever chuva, saber como transformar um galho quebrado de goiabeira numa muda e compreender a sutil diferença de aroma e sabor que separa frutas de sacolão das colhidas no pomar na roça.

Assim, é gerada toda uma mística em torno da vida no campo e da discreta sabedoria do roceiro humilde, uma pessoa simples e prática e, justamente por isso, dotada de uma compreensão pragmática e profunda do espírito humano; quase um personagem do Morgan Freeman.

Cria-se então uma supervalorização das coisas simples da roça, aquele café ralo e doce, aquelas botinas com sola de pneu, aquele despertar às 4 da manhã. Uma glorificação do interior de Minas Gerais, terra boa e acolhedora, onde qualquer festa, feriado ou simples sexta à noite é desculpa para beber cachaça e cerveja até a inconsciência, por falta completa de qualquer outra opção de lazer. Ainda mais depois que os cinemas viraram igrejas, prontas para acolher quem bebe demais e precisa mudar a vida - e o ciclo se fecha.

Assim como o Windows é uma elegante ferramenta para provar que as pessoas conseguem se acostumar com praticamente qualquer tipo de sofrimento, a sabedoria jeca é um meio de destruição da vida humana enquanto experiência estética prazerosa.

O poder de atração da silenciosa filosofia fazendeira nos seduz, e nos convence de que há, ali, algo de valor. Temos luz elétrica. A sociedade pode funcionar a qualquer hora, manhã, tarde e noite. Mesmo assim, insistimos em obrigar as pessoas a acordarem em horas desumanas, como 6 ou 7 da manhã. Por que? Porque desde 5 mil anos atrás os fazendeiros (leia-se quase todo mundo até o século XIX) acordam de madrugada.

Sábios? Não, apenas pessoas que precisam tirar leite das vacas. A simples função de uma categoria profissional, hoje bem menos expressiva, ditou as normas do mundo por milênios. Prova maior da estupidez humana não há (talvez o Windows).

Ninguém atende o telefone em casa e diz “Bom dia, meu nome é Fulano, em que posso ajudar?”, nem sai do trabalho na hora do almoço para pegar o carro e dirigir lentamente pelas ruas enquanto os amigos jogam sacolas de plástico cheias de lixo no porta-malas.

Quem faz isso são atendentes de call center e lixeiros. E quem acorda de madrugada são fazendeiros. Está na hora de abandonar a sabedoria jeca e adotar de vez a sabedoria urbana.

Não sei fazer muda de planta, mas sei fazer um Dry Martini espetacular. Nunca consegui olhar para o céu e saber se ia chover, mas consigo olhar para um email e saber que é mentira, não vão cancelar minha conta no Messenger ao menos que eu clique naquele link.

O que eu sei é que são quase quatro da manhã e não dormi ainda, mas tudo bem, meu leite não vem de vaca, vem de Tetrapak.

Naomh Pádraig

Tudo começou em um dia de São Patrício. Meio a um porre colossal, Godofredo começara a balbuciar incongruências ininteligíveis, certamente derivadas do consumo de exatamente 574 mililitros de álcool etílico, espalhados de forma irregular por diversas garrafas de cerveja e inúmeras doses de whisky. Seus amigos – Arnaldo, consumidor orgulhoso de 485 mililitros e Estêvão, puxando a frente com 693 mililitros – imbuídos pelo espírito católico irlandês do dia 17 de Março, data na qual é venerado o santo Naomh Pádraig pelo simples fato de nela ter morrido, convenceram Godofredo de que não eram apenas resmungos de bêbado, e sim uma dialeto obscuro do irlandês arcáico falado apenas pelo santo. Godofredo acreditou em seus dois supostos amigos e passou a ter certeza de ser a reencarnação do santo e que sua missão seria destruir toda a delicada mitologia proposta pela igreja católica com sua teia de mentiras e ganância, trazendo uma nova era de paz e espiritualidade, coisas que raramente andam juntas.

Ironicamente, Godofredo ignorava (como ignoraria pelo resto de suas poucas horas no planeta) ser descendente direto do Papa São Gregório VII, seguindo a linhagem de um filho bastardo jamais visto pelo pai, que certamente reviraria na cova ao saber que um de seus descendentes andara pregando reencarnação. No caso quem reviraria seria o papa, já que o filho fôra apenas um camponês insignificante desprovido da capacidade analítica necessária para compreender a gravidade da existência de tal fenômeno para os pilares da fé católica.

Mais pertinente seria notar que Godofredo também ignorava seu transtorno dissociativo de identidade latente, que só agora aflorara em toda sua resplandescente glória.

Subitamente transformado em santo, Godofredo ergueu-se glorioso da cadeira, para espanto de Arnaldo e Estêvão, subiu desajeitadamente no tampo de fórmica que imitava madeira da mesa e começou um discurso colossal, estrondoso, que faria as bases de toda a sociedade desabarem e daria início a uma Nova Era da Humanidade, uma era de compreensão e fraternidade em que o amor prevaleceria e a solidariedade dimensionar-se-ia como a grande moeda de troca da espécie humana. Ditadores cruéis e terríveis cairiam, injustos se arrependeriam e dedicariam suas vidas ao bem, o poder escorreria das mãos dos poucos nas quais esteve concentrado durante quase toda a história humana e desapareceria para sempre para permitir a igualdade; todos seriam livres, felizes e contentes para todo o sempre, sem precisarem de dor, sofrimento e agonia. Um discurso para salvar a humanidade, iluminar as trevas e trazer ordem ao caos.

Infelizmente, Godofredo estava convencido ser um santo irlandês, e todo o discurso de quase duas horas foi feito em grunhidos e resmungos que o jovem herege presumia serem irlandês arcáico. Arnaldo e Estêvão, temendo a intervenção violenta de alguns freqüentadores menos iluminados do bar haviam desaparecido, e a única coisa que ruiu por terra graças à grandiloqüência de Godofredo foi a mesa sobre a qual discursava, partindo-se em três pedaços e lançando o santo destronado ao chão, onde bateu a cabeça e morreu em segundos, nunca descobrindo que não existe reencarnação, não existe paraíso e não existe Deus, apenas um chão de linóleo e uma escuridão eterna.

O garçom que tentou socorrê-lo, ao ver que não havia nada a se fazer, roubou sua carteira, provando de uma vez por todas que não tem jeito mesmo e que estamos todos fudidos por toda a eternidade, boa noite.

O Não-País

Em 1963, franceses que pescavam lagosta ilegalmente na costa brasileira foram presos e gentilmente devolvidos à França. Irritado, o então presidente Charles de Gaulle teria dito “O Brasil não é um país sério”. O que não faria sentido; um país que fiscaliza sua costa e repreende práticas ilegais pode ser considerado bastante sério. Só começa a fazer sentido quando descobrimos que a frase foi suavizada pelo então embaixador brasileiro na França, Carlos Alves de Souza Filho.

A frase original proferida por de Gaulle seria “O Brasil não é um país”. Ou seja, fodam-se os limites de águas territoriais brasileiras, foda-se a polícia, foda-se a diplomacia, nem é um país.

Faz sentido.

Desde então, as únicas fontes fidedignas de informações e opiniões sobre o Brasil (tirando Diogo Mainardi, o último ser humano sensato de nosso não-país) têm sido publicações estrangeiras.

O New York Times publicou um artigo em Dezembro de 2007 que resumia toda a situação do Renangate em alguns poucos parágrafos. Era objetiva, direta e, mais importante, sem rabo preso. Por motivos óbvios; não consigo imaginar por qual motivo o New York Times colocaria panos quentes em qualquer coisa relacionada ao Brasil.

Um relatório do Departamento de Estado norte-americano desceu o cacete no Brasil por causa de coisas típicas desse não-país, como corrupção, simbolizada pela mais recente afronta à inteligência humana, que é o não linchamento de nosso estimado criminoso, ex-Presidente do Senado), impunidade (mais uma vez, lá estava Renan) e violência policial (mais precisamente, o caso da menina de 15 anos de idade encarcerada com 20 homens em um não-estado do nosso não-país, que, claro, foi abundantemente estuprada).

Qual conclusão podemos tirar disso tudo, tirando a óbvia, de que o Brasil não é um país viável? A conclusão é que a imprensa brasileira tem o rabo preso de forma quase criminosa. Seja por pressões de nossos dirigentes eleitos, seja por auto-censura, os jornais do Brasil lidam de forma excessivamente comedida com a realidade política do país.

Tirando o Estado de Minas, mais proativo em suas atitudes, que ignora agressivamente qualquer fato negativo do Governo do Estado. Se Aécio Neves peidasse durante uma comitiva, a manchete no dia seguinte seria “O Doce Aroma da Boa Liderança”. O que mais me incomoda é que considero Aécio Neves um governante acima da média, e votaria nele para Presidente da República sem pestanejar, mas é um absurdo o jornal de maior circulação do estado ficar ajoelhado com o pau dele na boca. Na verdade é um absurdo o jornal de maior circulação do estado ser a merda que é. Minhas condolências a todos (os quatro ou cinco) jornalistas de verdade que trabalham para o grande jornal dos mineiros.

Minhas condolências a todos os seres humanos semi-racionais que povoam nosso não-país.