Três Formas de Odiar

Este texto é um pouco diferente do padrão; são três temas que já tentei desenvolver sem muito sucesso, talvez por serem idéias excessivamente sucintas. De qualquer forma, são três pequenos textos embolados em um só, então certamente tem alguma coisa para ofender a todo mundo.

Ficção é Mais Estranha que a Realidade

Sempre fico abismado quando vejo algum filme cheio de pontas soltas e situações confusas que, de repente, se amarram e encaixam e tudo fica perfeito.

Fico abismado, na verdade, com as reações das pessoas. Elas ficam impressionadas mesmo, como se fossem coincidências reais e loucas (“aí o menino descobre que ele sempre odiou brócolis porque o pai dele o obrigava a comer brócolis, por isso que ele matou o fazendeiro que plantava brócolis, mas o pai dele era amigo do policial que procurava pelo assassino do fazendeiro de brócolis e o irmão do fazendeiro blá blá blá”).

É FICÇÃO. Qualquer coisa que você quiser que aconteça, pode acontecer! Que tal pensar na competência do roteirista ao invés de ficar parado na porta do cinema conversando com outros idiotas comentando que loucura que o cara era pai do cara que era irmão do outro que na verdade era o cara que matou o cara?


Alguns mais iguais que os outros

O Brasil é um país tão racista e individualista que, quando zilhões de crianças negras pobres morrem em decorrência do tráfico e outras formas de violência, é só estatística. Quando um menino branco de classe média morre arrastado por um carro em decorrência de um assalto mal executado, o Brasil inteiro entra em comoção, gritando e esbravejando.

"Atores" de novela vestem camisetas brancas com palavras como PAZ e JUSTIÇA e, ocasiosalmente, pombos brancos, e pedem o fim da violência. Como se pombos não fossem ratos alados, vetores de milhares de doenças, e como se fosse uma escolha consciente a degradação urbana brasileira.

Claro, existe a violência porque os atores de Malhação não haviam pedido que reinasse a paz. Agora sim, teremos tranquilidade, não vai nem precisar de trancar a porta à noite. Eles querem PAZ (parar de comprar pó eles não querem, mas querem paz).


Monogamia Poligâmica

Monogamia é fundamental para a vida humana, assim como para a existência de toda a espécie. Mesmo quando é poligâmica.

Imagino que em boa parte dos casos, relações poligâmicas são escondidas e secretas, mantidas até o túmulo. Ou pelo menos até logo antes do túmulo, quando a Outra aparece com dois filhos e se apresenta para a esposa na beira do caixão. Esporadicamente, nos confrontamos com uma poligamia aceita; isto é, uma poligamia explícita e pacífica. Três mulheres morando na mesma casa, com um cara, ou algo do gênero. Elas aceitam isso, é algo conhecido e tolerável. Um dia come uma, outro dia come outra, um dia, quem sabe, até come as três juntas.

Mas deixa esse cara sair e comer uma outra. Morte na certa.

Hortifrutigranjeiros

Vivemos num país de conto de fadas. Não um lugar lindo com um rei justo e uma princesa esperando o amor verdadeiro, mas uma distopia vivendo à base de mitos idiotas e sonhos surreais. O sentimentalismo e a demagogia dominam o país, e o falso moralismo corrói a sociedade como um câncer. Como diz meu amigo SaintCahier, “[Povo] mais bunda que o brasileiro, eu desconheço.”

Em várias incidências vemos a bundice brasileira em ação: não fuzilar os integrantes do MST, não esfolar vivas ministras da economia que confiscam seu dinheiro, não linchar em praça pública os generais e torturadores da ditadura, levar a sério Big Brother. Mas em nenhum caso a manifestação do brasileiro bunda-mole é mais grave que nossa relação com hortifrutigranjeiros.

Sério? Sério. O sacolão define perfeitamente a essência do povo brasileiro enquanto consumidor e, como conseqüencia, cidadão. Se americanos nervosos ocasionalmente entram armados no McDonald’s e abrem fogo na galera, deveríamos fazer o mesmo em sacolões Brasil afora.

Temos diversos climas no país, propício ao cultivo de praticamente todo tipo de fruta e legume, e mesmo assim só temos merda no sacolão. Bons exemplos são frutas que saem ligeiramente do tropical, como pêssegos e maçãs e morangos e amoras, que são de qualidade lamentável na terra da manga e do abacaxi (talvez as únicas duas coisas que prestam no Brasil).

O que isso tem a ver com a personalidade coletiva do brasileiro? Mostra como aceitamos consumir qualquer merda que seja enfiada goela abaixo, qualquer maçã massuda ou pêssego duro. Não somos consumidores exigentes, isso é mais que claro. Aceitamos pagar o triplo que um americano paga numa televisão (mesmo sendo fabricada na China), e ainda agüentamos o gerente semi-analfabeto da Ricardo Eletro explicando como funciona a política de troca da loja e que ele não pode fazer nada quando a TV estraga. Somos consumidores fracos e estúpidos.

É muito fácil rir da mania dos europeus de pagarem 5 euros numa manga e comerem bananas verdes, que jogam fora assim que aparecem pequenas pintinhas pretas (ou seja, quase pronta para comer), mas eles exigem qualidade suprema em televisões, máquinas de lavar roupa e hortifrutigranjeiros. Nós somos idiotas, o que é comprovado pelo nosso comportamento em relação ao tomate.

O tomate é a quintessência da estupidez brasileira. Além de só termos dois tipos de tomate (aquele grandão sem gosto de nada e aquele pequeno com gosto de agrotóxico), compramos verde e jogamos fora maduro. É verdade, e você sabe disso. Não tente negar. É inadmissível um tomate manchado de verde chegar à mesa. Tomates são vermelhos, porra. Vermelhos, não verdes, não amarelados, e sim VERMELHOS.

Tomates não devem ser consumidos duros e verdes, devem ser consumidos firmes e vermelhos. Geralmente quando chegam ao ponto certo, são jogados fora, porque passaram do ponto. Passaram de onde, do ponto de quase maduros?

Como sempre, existe um lado positivo. A vantagem da estupidez tomatal do povo brasileiro é que nós, os seres humanos sensatos do Brasil, podemos comprar tomates maduros em qualquer sacolão, desde que cheguemos depois das idiotas que compram verde e antes dos funcionários que jogam fora maduro.

Respeitem o tomate. O tomate é nosso amigo, principalmente maduro.

In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti

03:57 no despertador, acordo gritando. Dez anos matando gente e todo dia acordo gritando. Vejo cada rosto que já matei. Só tenho paz quando encontro com Cândida, e apanho.

Maldita criação católica. Só aplaco a culpa com penitência. Sangramento, hematomas, ocasionais fraturas, igual nos velhos tempos. O papa ficaria orgulhoso, velho louco. O pecado da luxúria, pequeno preço a pagar.

Mas há três dias não vejo Cândida. A capa de chuva e as luvas de látex esquecidas na valise, só me resta suar, gritar e dormir em pequenos intervalos entre os pesadelos. Preciso apanhar hoje, a exaustão está fora de controle.

Abro a porta do prédio e subo de escada até o terceiro andar. Minha mão segurando a valise está suada, cheia de más intenções. Será que o paraíso está repleto de más intenções, para contrapor ao inferno?

Não me dou ao trabalho das luvas nem da capa. Entro silenciosamente, não quero que Cândida me veja ainda. Quero assustá-la, assim apanho mais. Talvez até uma fratura, por acordá-la de madrugada. Uma fratura são duas semanas dormindo em paz.

A fresta da porta do quarto mostra luz. Estranho. Cândida não tem pesadelos, criada pagã. Inveja. Mais um pecado. Vou direto para o inferno.

Cândida conversa com alguém. Alguém homem. Escuto tudo, do outro lado da porta. Estão contentes, vão poder ficar juntos agora que o marido dela está morto. Assassinado no banheiro da empresa onde trabalha. Garganta cortada por um homem com capa de chuva.

Um homem que vai pro inferno. Ainda mais agora, depois voltar à cozinha do apartamento, pegar uma faca e passar mais de duas horas esquartejando os dois, nus, na cama. Trabalho até o sol raiar, fazendo uma piscina de sangue no chão do quarto. Manchando minha roupa, e minhas mãos. Minha roupa desprotegida, sem capa, e minhas mãos expostas, sem luvas, sujas de sangue. Lavo as mãos, mas o sangue mancha, não importa o quanto eu esfregue.

Saio do prédio, finalmente vestindo a capa de chuva para me proteger das gotas enormes caindo. Tenho esperança que me protegerá também do raio que, certamente, um dia me fulminará. Maldita chuva, maldito trabalho, maldito Deus, maldita Cândida.

Cândida

– Pra onde vamos, chefia?
– Getúlio Vargas com Alagoas.

Abro o jornal e finjo ler alguma matéria sobre os novos avanços da NASA na tentativa de criar um habitat viável para colonização da lua e, futuramente, planetas (não está indo bem, dá pra ver pelas entrelinhas da matéria), tudo para evitar conversa.

Momento de foco e concentração, preparando para o encontro final com Cândida. Semanas de preparação, cuidado extremo. Tudo para ganhar confiança e me aproximar.

– Você viu o jogo ontem? Porra, que pelada, hein?

Nem escuto o imbecil dirigindo o táxi. Estou preocupado. Não me preparei adequadamente. A certeza inabalável me assola. Começo a sentir aquele calafrio estranho, um gelado na barriga e arrepio na nuca. Fecho os olhos e respiro, tentando controlar o pânico.

Sinto o suor brotando na testa, todos meus músculos travando. Sei que o motorista está me olhando pelo retrovisor. Pelo menos agora acho que não vai tentar puxar papo.

Minha última chance hoje. Após semanas, tentando entender todos os códigos e tirar tudo que poderia de Cândida, chegou o momento inevitável, e preciso me controlar.

Minha mão esquerda desliza até a sacola ao meu lado no banco de trás. Escorrego os dedos para dentro. Cada objeto identificado me acalma um pouco, a respiração volta ao normal, depois de alguns minutos abro os olhos e sorrio.

– Tá tudo bem aí, cara?

Continuo sorrindo e ignorando. Chegamos, pago o dobro que devo e desço.

O prédio conhecido, abro o portão com minha chave. Cândida mora no 301, subo de escadas e paro no corredor. Preciso ser rápido, nenhum vizinho pode passar enquanto me preparo. Em segundos, pesco um par de luvas de látex no bolso do paletó, visto, abro a sacola e visto a capa de chuva que estava lá dentro, visto os óculos de proteção presos com um elástico branco por trás da minha cabeça. Abro a porta do apartamento. Finalmente chegou a hora.

Adiar prazer? Expectativa aumenta a emoção de conseguir algo? Sofra agora, deleite-se mais tarde? Parece muito cristão. Penitência é para idiotas. Fodam-se os sete pecados e o paraíso depois, quero prazer constante. Quero sobremesa antes e depois do jantar.

Com Cândida não foi assim. Semanas de preparação, estudando seus hábitos, me preparando para o momento apoteótico que se aproximava, finalmente.

Fecho a porta, silencioso, vejo Cândida parada no centro da sala, de costas para mim, observando algo que segura nas mãos e que não vejo. Avanço lentamente, medindo cada passo. O tempo pára. Estou a cinco passos dela. Quatro. Três. Dois.

– DEITA! – berra Cândida, virando rapidamente, me batendo na cara com a cinta que examinava – JUNTO, maldito escravo imprestável! Matou o homem da foto?

Caio de joelhos, o sangue escorre nariz abaixo, resultado da primeira cintada. Abano a cabeça em afirmação.

– Bom escravo! De prêmio, vai lamber minhas botas, seu porco imundo!

Cândida termina de me jogar no chão, sempre batendo, batendo, pquenas gotas de sangue caindo do meu nariz na capa de chuva de plástico transparente, eu me ajoelhando e lambendo suas botas de couro, pretas e novas, sentindo lágrimas de felicidade brotando dos meus olhos e a sensação de finalmente conseguir o prazer que tanto queria me preenchendo por todo.