Gravatas

Realidade não deixa margem para especulação, é a puta de luxo do pragmatismo. Esqueça discussões sobre aborto, é um cabide tentando puxar o feto. Esqueça especulações e análises sobre violência urbana, é o cano de uma nove enfiado goela abaixo e um malaco suando frio de abstinência de pedra arrancando seu dinheiro.

Esqueça anedotas sobre situações desagradáveis em aviões, é um executivinho de merda na poltrona ao lado, tentando puxar papo comigo desde que a aeromoça terminou de explicar o que fazer no caso de despressurização (coloque a máscara sobre o rosto, prendendo o elástico atrás da cabeça).

Quarenta desesperadores minutos depois e finalmente pousamos (favor manter telefones celulares desligados até desembarcarem da aeronave), sãos e salvos, apenas um pouco amarrotados e com pés inchados.

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Assim que ligo o celular, uma mensagem de texto aparece com a hora e o lugar da reunião. Arrumo o nó da gravata, aliso o paletó e saio para o terminal antes de todo mundo. Não tenho bagagem.

Acho o motorista com meu nome na placa logo no desembarque (sou eu, não tenho bagagem nenhuma).

No banco de trás do carro está a valise com tudo que vou precisar durante o dia, e o motorista já foi instruído sobre meu trajeto.

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Os trinta andares do prédio estão abarrotados de pessoas. Diretores, estagiários, contadores, executivos e trainees, empenhados em ganhar dinheiro, passar o dia, subirem na empresa.

Tiro um crachá da valise, prendo no paletó, cumprimento o porteiro com um aceno de cabeça (bom dia, senhor). Entro no elevador e subo até o vigésimo-quinto andar, praticamente deserto, exceto pela sala de reuniões.

Passo direto pela porta e vou até o banheiro. Quatro mictórios, três pias e duas privadas. Me tranco dentro de um dos cubículos. Uma privada, um rolo de papel higiênico e um gancho para pendurar sabe-se lá o quê.

De dentro do bolso do paletó tiro um par de luvas de látex, vestindo-as com cuidado. Da valise sai uma capa de chuva de plástico transparente, que visto também, abotoando-a até em cima.

Agachado na privada, para não ser visto de fora, aguardo.

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Treze pessoas passam pelo banheiro em quarenta e sete minutos. Vejo-as pela fresta da porta. Algumas sozinhas, cantarolando (…quero descansar, ir ao cinema com você, um filme à toa…), outras acompanhadas, absortas em conversas óbvias (…aí falei com ela, porra, eu não sou uma máquina de ganhar dinheiro, você precisa ter um pouco de…). A décima-quarta pessoa corresponde exatamente à foto que tiro de dentro da valise. Exatamente o executivinho de merda que me amolou o vôo inteiro.

Coincidência louca, penso, enquanto abro a porta, puxo a faca de dentro da valise e corto a garganta do alvo, seja ele quem for, esguichando sangue na capa de chuva que tiro rapidamente, junto com as luvas, jogando tudo no lixo e saindo do banheiro, valise na mão, ajustando o nó da gravata, alisando o paletó e me preparando para pegar mais um avião.

A Complexa Individualidade dos Mendigos e Canários Belgas

Dizem por aí que existe um canário belga no Inhotim. Dizem ainda que ele vive numa gaiola. E dizem mais: dizem que as condições nas quais vive o canário belga são desumanas. Dizem que ele fica numa sala toda vermelha, sem janelas, com ar-condicionado, e que ele deveria ser libertado (na verdade, dizem “retirado”, mas presumo que não seja só um desejo de não ver o bicho e sim de que o bicho seja libertado).

Eu digo: pare de ser hippie.

Como alguém tem ânimo e tempo para se preocupar com um canário belga dentro de uma gaiola num museu? Se quiser demais ser engajado, existem zilhões de bichos que morrem para nos alimentar, vestir e manter com cabelos sedosos, todos merecendo mais atenção que um único solitário canário belga (que nem está sendo maltratado porra nenhuma).

Além do que, animais são como mendigos; não têm individualidade. Mendigos são gente mas não são indivíduos, assim como uma unidade específica de canário belga é insignificante. O que importa é a sobrevivência da espécie, não o conforto individual de cada canarinho (ou mendigo).

Eu sei, eu sei, aquele mendigo louco de bicicleta que berra músicas do Raul Seixas e toca um violão de duas cordas é super único e diferente. Não é. No fim das contas, é alguém sujo, fedorento, constantemente bêbado e que dorme na rua, seja lá qual for a patologia psiquiátrica específica dele.

Acho que isso é tudo culpa da Disney e da Pixar, com seus filmes personificando animais de forma surreal. Tentar transpor o sonho americano do self-made man e da mobilidade social para o mundo das formigas ou abelhas é, no mínimo, insano. Já não basta as pessoas serem tão burras, loucas e carentes a ponto de acreditarem que o totozinho tem uma gama enorme de emoções e uma complexidade de sentimentos woodyallenesca, só porque têm algo semelhante a sobrancelhas e expressões faciais, agora elas acham que cada canário belga do mundo é um diamante precioso.

As pessoas começam a se colocar no lugar dos animais, ao invés de pensarem e aproveitarem da única vantagem biológica do ser humano (se você não sabe qual é, provavelmente nunca usou).

Um canário belga caga e anda se está numa gaiola numa sala vermelha; tendo comida e água, o bicho tá de boa. Bichos querem comer, dormir, beber e trepar, e nada mais. Igual a mendigos.

O ciclo se completa.

Escola Proietti de Bom Senso

Nenhum creme de celulite tem 93% de eficácia, não dá para ter barriga de tanquinho com aquele aparelhinho dá choque no músculo, e ninguém que ficou bilionário com o mercado de ações vai realmente dividir os segredos em livros vendidos em aeroportos.

Tudo óbvio, não é? Não. Por incrível que pareça, o mundo está repleto de indivíduos sem nem um toque de bom senso. São os que gastam rios de dinheiro com livros de auto-ajuda, cremes, aparelhos de ginástica, complexos de vitaminas, títulos de capitalização, e tudo para quê? Preencher o enorme vazio dentro de cada um, que grita todo dia? Ser mais rico, mais bonito, mais saudável, mais mais mais qualquer coisa, na ilusão de um dia se tornar um ser humano completo e feliz.

Quando juntamos o vazio natural à falta obscena de bom senso da esmagadora maioria das pessoas, temos o maior mercado de todos, o da idiotice. Por algum motivo, jogo no Brasil é ilegal, porque jogos de azar não dão uma chance justa para o jogador. Mas e cremes de celulite? Que mulher em sã consciência não gostaria de ter menos celulite? E Shampoo antiqueda? Que homem em sã consciência não gostaria de perder menos cabelo?

Idiotas trabalham e ganham dinheiro igual a todos os outros, e chegou minha vez de explorar o nicho dominado por cosméticos caros, aquelas máquinas que engolem uma fruta inteira e cospem fora suco, e, claro, Herbalife.

Vou fundar a Escola Proietti de Bom Senso. Meus alunos serão pessoas comuns, mas que não tiveram, de alguma forma, aquela dose fundamental de desconfiança e desilusão, fundamentais para um bom senso aguçado. Os alunos viriam por recomendação dos amigos, cansados de precisarem explicar que todas aquelas frases do Big Brother que viram bordões são escritas por roteiristas da Globo, e que manga com leite não mata.

A primeira lição (depois de descontado o cheque do módulo um) é nunca mais pagar para aprender algo impossível de ser ensinado. Depois podemos evoluir para casos mais específicos. Exemplo? Se um creme contra celulite diz ter 93% de eficácia, bom senso diz que devemos conferir no verso da embalagem, para entendermos o que exatamente quer dizer isto. O verso, claro, revela que, num estudo do fabricante, feito com 100 mulheres, 93% perceberam alguma melhora após usar o creme. Só aí temos viés, amostragem pequena e um resultado imensurável e impossível de avaliar. Mais fácil de identificar que isso, só aqueles mendigos velhinhos que, aparentemente, estão tentando voltar para Manhuaçu há 15 anos e nunca conseguem juntar o dinheiro da passagem.

Entendeu como funciona? Agora ande na linha e pense antes de falar, antes que seus amigos façam uma vaquinha para te dar o Módulo I da Escola Proietti de Bom Senso.